O cancro infantil é um flagelo, mas, felizmente, já não é necessariamente uma sentença de morte.
Este ano, das cerca de 11 mil crianças com menos de 15 anos diagnosticadas nos Estados Unidos, cerca de 80% deverão sobreviver 5 anos, ou mais, para além do diagnóstico.
“E isto são ótimas notícias”, disse Subha Mazzone, oncologista pediátrica do Northern Light Eastern Maine Medical Center, nos Estados Unidos.
“Mas também significa que cada vez mais sobreviventes são obrigados a lidar com os efeitos secundários causados pelos mesmos tratamentos que os salvaram. A quimioterapia e a radioterapia são projetadas para serem tóxicas, a fim de eliminar células cancerígenas. Mas essa toxicidade também pode afetar outros órgãos e causar danos duradouros. Apenas 1 em cada 5 sobreviventes de cancro infantil sai ileso dos tratamentos, sem sofrer uma condição médica crónica”, acrescentou a médica.
Subha Mazzone é responsável por um projeto que ajuda sobreviventes a lidar com os problemas médicos relacionados com o seu tratamento contra o cancro.
“Os sobreviventes tendem a envelhecer mais cedo. Cada vez mais estamos a observar o surgimento precoce de problemas cardiovasculares, doenças hepáticas… os problemas de aprendizagem são enormes”
No entanto, existe um assunto que não frequentemente debatido: os problemas de fertilidade que estes sobreviventes enfrentam.
“Quando se é pai e o médico diz que o seu filho precisa de um transplante de medula óssea, a questão da fertilidade e da toxicidade é das últimas coisas que passa pela cabeça de alguém”, disse a investigadora e geneticista Ewelina Bolcun-Filas.
“Mas, cada vez mais, esses são fatores que devem ser tidos em consideração. Precisamos de começar a pensar no futuro. Os tratamentos deveriam permitir que as crianças sobrevivessem e tivessem uma vida normal depois…e não é bem isso que acontece”.
“O que precisamos, e o que não temos, é uma maneira de proteger realmente as jovens do sexo feminino. O congelamento de óvulos é a única opção que existe atualmente, mas a preparação para esse processo pode levar semanas, o que atrasa o tratamento oncológico. É um procedimento invasivo que, muitas vezes, necessita de cirurgia, e que é pago pelas próprias famílias, que também são obrigadas a pagar uma taxa anual de armazenamento para manter os óvulos congelados”, explicam as investigadoras.
“E tudo isto é pior para meninas mais jovens que ainda não passaram pela puberdade, uma vez que os óvulos não podem ser preservados da mesma maneira”.
Nestes pacientes, o cirurgião deve remover um ovário inteiro, cortá-lo em pedaços e criopreservar as seções que contêm óvulos imaturos.
“Só mais tarde, quando a criança estiver saudável, é que essas peças poderão ser colocadas num outro ovário. Mas mesmo isso não garante necessariamente que a sobrevivente, já em idade adulta, possa ter filhos. E existe sempre o risco de reintroduzir as células cancerígenas”, acrescentou Ewelina.
A geneticista estudou as causas da infertilidade durante a maior parte da sua carreira, mas há vários anos começou a questionar-se se haveria uma maneira de evitar danos aos óvulos durante o tratamento, algo que não envolvesse a remoção de óvulos ou ovários; Ewelina começou a procurar uma proteína que funcionasse como um “ponto de verificação da qualidade” durante o desenvolvimento dos óvulos.
Quando um oócito (um óvulo imaturo) se está a desenvolver, ele divide-se duas vezes, num processo conhecido como meiose. Durante essa divisão, as cadeias de ADN do oócito passam por intervalos pré-programados que são reparados. Certas proteínas monitorizam o processo de quebra e reparo do ADN durante o desenvolvimento de oócitos (futuro óvulo), atuando como “pontos de verificação de qualidade” para garantir que as quebras foram reparadas adequadamente para que os óvulos possam desenvolver-se normalmente.
Mas os tratamentos contra o cancro, particularmente a radioterapia, também podem induzir quebras no ADN do desenvolvimento de óvulos.
Quando muitos óvulos em desenvolvimento são danificados ao mesmo tempo durante o tratamento oncológico, as proteínas de reparo não conseguem acompanhar e o ponto de verificação da qualidade desencadeia um processo que resulta na morte da célula. Como uma mulher tem apenas uma quantidade definida de óvulos e não pode produzir mais, esses óvulos são perdidos para sempre.
Assim, a investigadora começou a procurar uma maneira de desativar uma proteína específica de ponto de verificação de qualidade durante o tratamento, permitindo que os mecanismos de reparo tenham mais tempo para consertar as células danificadas e impedir que elas fossem destruídas.
Após anos de pesquisa, a investigadora e a sua equipa descobriram que o inibir o gene de uma certa proteína de ponto de verificação, conhecida como quinase CHK2, impedia a morte de óvulos imaturos expostos à radioterapia, preservando a fertilidade em ratos.
“Essa proteína parece amplamente dispensável. Existem outras proteínas que podem complementar a sua função. Mas nada na ciência é simples”, confessa Ewelina.
A equipa está agora a analisar para quais tipos de tratamentos contra o cancro a terapia será eficaz.
“Em humanos, é sempre mais difícil. É por isso que existem os ensaios clínicos. Mas, até agora, não encontrámos um inibidor que não seja tóxico”.
Há também a questão de saber se os óvulos que sobreviverão serão viáveis e saudáveis.
Mas, apesar das complicações e do provável longo caminho pela frente, a equipa de cientistas está otimista, uma vez que, muito recentemente, recebeu uma doação de 200 mil dólares (cerca de 181 mil euros) da V Foundation for Cancer Research para continuar o trabalho.
“Talvez a fertilidade não pareça ser um grande problema, porque não é um assunto abordado. Mas temos de começar a alertar para este flagelo. Não se trata apenas de permitir que os sobreviventes tenham filhos biológicos, embora esse seja um aspeto crucial. Mais vai para além disso. É uma questão de saúde”, finalizou Ewelina.
Fonte: The Ellsworth American