Kristy Sharif sabia que os fármacos a deixariam nauseada; mas, mesmo assim, o maior medo daquela jovem, na altura com 10 anos, era que esses mesmos fármacos a fizessem perder o cabelo.
Isso foi há 27 anos.
Kristy tinha acabado de ser diagnosticada com um cancro ósseo, de seu nome osteossarcoma. A menina ficou profundamente assustada. Apenas um ano antes, um amigo da família tinha morrido de cancro.
Mas o oncologista de Kristy prometeu-lhe que, não só a quimioterapia e a cirurgia lhe iriam salvar a vida, como ele iria dançar com ela no dia do seu casamento.
Ambas as promessas foram cumpridas.
Kristy tem agora 37 anos, é mãe de dois filhos e está grávida do terceiro. Esta sobrevivente afirma que o cancro moldou a sua vida, mas não a define enquanto pessoa. Aliás, segundo a própria, em determinados dias, a sua experiência com o cancro infantil é pouco mais do que uma lembrança distante e uma longa cicatriz na perna esquerda de uma cirurgia de nove horas.
Mas noutros dias, Kristy admite ficar preocupada com o facto do seu tratamento ter deixado feridas ocultas com as quais ela poderá ter que lidar para o resto da vida. Os medicamentos quimioterápicos que esta mulher tomou podem vir a causar-lhe insuficiência cardíaca prematura ou outros problemas cardiovasculares.
Durante anos, Kristy e os seus médicos mantiveram o controlo de sua saúde através de uma série de testes, como ultrassonografias regulares ao seu coração.
“A minha jornada não terminou quando deixei o hospital após meu último tratamento. Esse foi apenas um capítulo na minha longa história”.
Atualmente, esta sobrevivente trabalha como chefe do comité de defesa de pacientes do Children’s Oncology Group, a maior organização do mundo dedicada à pesquisa sobre o cancro infantil.
Devido ao seu cargo, Kristy conhece bem Eric Chow, um oncologista pediátrico do Fred Hutchinson Cancer Research Center, nos Estados Unidos, que ainda esta semana apresentou os resultados de novas pesquisas sobre os medicamentos que Kristy tomou, na reunião virtual de 2020 da Sociedade Americana de Oncologia Clínica, também conhecida como ASCO.
Eric Chow e os seus colaboradores do Children’s Oncology Group exploraram duas questões principais: existe algo que os médicos possam fazer durante o tratamento de uma criança para proteger o seu coração? E para sobreviventes adultos como Kristy, o que ser feito para monitorizar e reduzir o risco de doenças cardiovasculares?
“Tendo em conta que as taxas de sobrevivência a longo prazo para os cancros infantis têm melhorado, torna-se essencial que nos concentremos em formas de enfrentar os problemas de saúde que podem surgir anos ou mesmo décadas depois”, disse oncologista e investigador.
Eric defende que o objetivo dos oncologistas pediátricos é fazer aquelas crianças diagnosticadas com cancro prosperarem enquanto adultos, dando-lhes a possibilidade de viverem vidas produtivas muitos anos após terem terminado os seus tratamentos.
O tipo de quimioterapia a que Kristy foi sujeita é denominada de antraciclina, um tratamento “importante para muitos tipos de cancro”, mas que aumentam o risco de insuficiência cardíaca prematura.
“Ou seja, as crianças podem estar curadas aos 10 anos, mas começar a sofrer de insuficiência cardíaca aos 30. E isso é terrível. Portanto, a questão principal é: podemos modificar os tratamentos atuais para que as pessoas não tenham esses problemas crónicos secundários quando estão na casa dos 30, 40 ou 50 anos?”
Um medicamento chamado dexrazoxano (Zinecard) é o único medicamento aprovado pelo regulador de saúde norte-americano (FDA) para prevenir problemas cardiovasculares em pacientes com cancro da mama que receberam antraciclinas. Mas existe uma grande duvida sobre se esses medicamentos poderão ser uteis em crianças.
Há mais de 20 anos que vários ensaios clínicos pediátricos tentam responder a essa pergunta.
“Mas a pesquisa clínica de longo prazo é difícil”, observa o oncologista. “As pessoas crescem e afastam-se dos seus centros de tratamento e os cientistas acabam por deixar de as conseguir acompanhar. Os testes encontraram sinais promissores de que o dexrazoxano poderia fornecer alguma proteção ao coração até cinco anos após o tratamento, mas a sua ação a longo prazo ainda é uma incógnita”.
Há uns anos, Eric Chow e vários outros cientistas decidiram tentar encontrar o maior número possível de participantes originais do estudo, tendo conseguido encontrar quase 200 sobreviventes nos Estados Unidos e no Canadá.
Como relatado na ASCO 2020, os seus resultados iniciais mostram que pacientes pediátricos tratados com dexrazoxano têm uma melhor função cardíaca 18 anos após o tratamento, em comparação com aqueles que não foram tratados com dexrazoxano.
Eric Chow observou que, atualmente, cada vez mais centros de tratamento estão a usar o dexrazoxano nos pacientes pediátricos diagnosticados com cancro; o cientista espera que, quando a sua equipa publicar os resultados finais, o mundo da oncologia concorde que o medicamento se deve tornar um padrão de atendimento.
De acordo com o cientista, este foi o único estudo de longo prazo sobre a atuação do dexrazoxano em sobreviventes de cancro infantil.
“Por melhores ou piores que sejam os dados, este é, provavelmente, o estudo mais completo que existe”.
Se os sobreviventes, como Kristy, nada podem fazer nada sobre o tratamento contra o cancro que receberam em crianças, podem, por outro lado, trabalhar com profissionais de saúde os ajudar a para agir sobre importantes fatores de risco para doenças cardiovasculares, incluindo condições como diabetes, colesterol elevado e pressão alta.
Com milhares de sobreviventes de cancro infantil já em risco de doenças cardiovasculares devido aos tratamentos a que foram sujeitos, a equipa de Eric Chow também quer entender quantos deles foram diagnosticados e tratados para esses problemas de saúde que podem controlar.
“Em primeiro lugar, a melhor estratégia é impedir que esses problemas cardiovasculares aconteçam com potenciais protetores, como o dexrazoxano. Mas a verdade é que existem várias gerações de pessoas que já foram tratadas com sucesso contra o cancro e que podem ter fatores de risco desconhecidos ou não controlados; por isso, precisamos descobrir uma maneira mais eficaz de obter as informações de que necessitamos”.
Os cientistas recrutaram centenas de ex-pacientes do Childhood Cancer Survivor Study.
As suas descobertas, apresentadas na ASCO 2020, sugerem que é comum os médicos negligenciarem essas condições em adultos sobreviventes de cancro infantil. Entre as pessoas sem diagnóstico prévio conhecido, a equipa observou que mais de um quarto apresentava pressão arterial e níveis de açúcar no sangue preocupantes, e que quase 20% apresentavam níveis anormais de colesterol.
O grupo de pesquisa lançou agora um ensaio clínico randomizado com esses mesmos sobreviventes adultos para tentar resolver o problema.
Metade dos participantes receberá uma sessão de aconselhamento em tele-saúde com um profissional médico e elaborará um plano de ação para tratar a sua condição recém-diagnosticada ou sub-tratada. A outra metade receberá apenas os resultados dos testes, que também serão enviados ao médico.
Os cientistas avaliarão se a sessão de aconselhamento pode ajudar a melhorar o tratamento dessas condições; os resultados iniciais são esperados até ao final de 2021.
“O objetivo”, diz Eric Chow, “é tentar educar melhor o paciente e o seu prestador de cuidados primários para os riscos únicos que esta população pode ter de enfrentar”.
“O que esta equipa está a fazer, e tenho que destacar o trabalho do Eric, é dar às famílias a esperança de mais e melhores pesquisas avançadas, para que nenhuma família sinta que enfrenta estes desafios futuros sozinha. Espero mesmo que o trabalho destes cientistas ofereça a sobreviventes de cancro infantil, como eu, a oportunidade de um futuro melhor”, disse Kristy.
Fonte: Fred Hutch