O diagnóstico de cancro numa criança é avassalador para os pais. A taxa de sobrevivência à doença é elevada, mas, muitas vezes, o duro percurso de luta contra esta deixa marcas profundas. Muitas mães de crianças que tiveram cancro sofrem com stress pós-traumático e precisam de ajuda e apoio especializado para voltar à vida normal.
Flávia Silva e Paula Vicente são dois exemplos: mães de crianças que tiveram cancro. No pós-tratamento da doença dos seus filhos, desenvolveram stress pós-traumático. Só querem apoio, compreensão e tempo, porque sofrem. E não tiveram vergonha de pedir ajuda.
Flávia Silva deu entrada no Instituto Português de Oncologia do Porto (IPO do Porto) em setembro de 2019 com a filha de 20 meses, e não se lembra de chorar durante os longos internamentos e tratamentos. Mas, cerca de três anos depois do diagnóstico – uma leucemia linfoblástica de tipo B – já em casa, em Braga, e enquanto Teresa, a filha, que entrou em fase de vigilância da doença, brincava na sala, chorou compulsivamente ao ver o pôr-do-sol, um episódio que teve de desconstruir com ajuda médica.
“Aquele pôr-do-sol trouxe-me um sentimento de solidão que não soube explicar. Soube mais tarde que me remeteu para os tempos do IPO, quando, ao fim da tarde, o meu marido, a minha mãe, a minha irmã, iam embora. Mais um dia passado. A noite era só minha”, explicou.
A menina tem agora cinco anos, está estável, mas Flávia enfrenta o stress pós-traumático e não tem vergonha de o assumir. Mas sabe que nem todos os pais o fazem.
“A sociedade espera que façamos grandes jantaradas. Perguntam-nos se já voltamos ao trabalho ou para quando um segundo filho. Mas ativei um medo para a recidiva que me retirou a funcionalidade. A medicação ajuda, mas já passei cinco dias sem comer e sem comunicar com o meu marido. Demonstrei uma raiva fora do comum. Foi quando a minha psicóloga achou que estava na hora de subir de nível e passei para a psiquiatria”, explicou a mãe da menina.
Mónick Leal, coordenadora da Unidade de Psico-Oncologia do Núcleo Regional do Norte da Liga Portuguesa Contra o Cancro (LPCC), explica o que significa ter “medo da recorrência”, ou seja, recaída da doença, quando o doente volta a apresentar sintomas, depois de uma fase em que parece ter ficado curado.
A recaída “cria níveis de ansiedade muito elevados sempre que as pessoas têm de fazer um exame ou ir à consulta para ver como estão os exames. 99% das pessoas que passaram por situações traumáticas têm isto. E pais com filhos que tiveram cancro não são exceção”, afirma.
“A sensação de que a doença pode voltar a qualquer momento” faz com que as famílias “nunca se sintam seguras”, salienta a psicóloga clínica. “Qualquer tipo de sinal, dor, mancha, febre espoleta um alerta”, acrescenta.
O medo é tão avassalador que Flávia, muitas vezes, pede ao marido para dar banho à filha. “Dou por mim a olhar para as pernas da Teresinha e vejo negras. Dou por mim a apalpar-lhe os gânglios. É uma fixação”.
Paula Vicente, mãe da Leonor, agora com dez anos, revê-se nas palavras de Flávia. Descobriu que a filha tinha uma leucemia linfoblástica aguda porque “teimou” que a menina apresentava tosse persistente e andava pálida. “A Leonor tinha seis anos. Descobrimos por uma situação corriqueira. Não havia nenhum indício que nos levasse a pensar em alguma coisa daquela natureza”, explica.
A menina fez um ano de tratamentos intensivos e um ano de manutenção e chegou à fase de vigilância que leva Leonor ao IPO do Porto de dois em dois meses. Está sempre “com o coração nas mãos”. “E se tiver voltado?” – é a pergunta que soa sempre na cabeça de Paula, uma “sirene” que não quer que a filha ouça.
“Mas as crianças percebem tudo. Durante a doença, os pais e as crianças estão em modo de luta. Normalmente é quando tudo passa que demonstram mais dificuldades em lidar com os sentimentos e angústias”, elucida Mónick Leal.
Estes são “os desafios que as pessoas enfrentam depois dos tratamentos, no regresso à chamada vida normal”, explica a psicóloga. “Da mesma forma que as pessoas tiveram de se adaptar à doença e às suas novas rotinas e aos seus novos papéis, depois têm de se readaptar”, sublinha.
Mónick lembra que a LPCC tem consultas de psico-oncologia dedicadas a doentes e a familiares, mas “não quer nem se deve substituir ao Estado”, onde a lacuna nesta área é “muito grande”.
Paula Vicente também teve de pedir ajuda psiquiátrica. Agora, quando a Leonor tem febre, as palavras “gripe” ou “amigdalite” não são as primeiras que lhe vêm à cabeça. Qualquer espirro é “um susto”. “Tudo me faz ter medo. É difícil lançá-la ao mundo agora. É um querer muito dividido. É um querer que ela viva porque perdeu anos de infância, um querer que recupere tudo rápido e abrace o mundo de uma só vez, mas, ao mesmo tempo, há um medo que nos tolhe os movimentos e pensamos que é melhor fechá-la em casa”, confessa a mãe.
Mas, apesar do enorme medo, não o fez. Depois de um período de aulas com uma professora no domicílio ou de aulas online, a Leonor foi para a escola. “E foi a melhor coisa que fiz. E eu voltei ao trabalho, mas o desmame é muito difícil e demorado. Demorei a voltar a ver-me em minha casa. A minha casa era a da Acreditar [no Porto, onde viveu durante um ano e onde passou o Natal de 2018] e o IPO”, conclui.
Fonte: Lusa/O Açoriano Oriental