“Bem-vindos ao nosso mundo”: lidar com o diagnóstico de cancro infantil durante uma pandemia

Para biliões de pessoas em todo o mundo, a vida como a conhecíamos desapareceu em 2020.

Famílias e amigos ficaram separados. O uso de máscaras tornou-se obrigatório. Lavar as mãos regularmente passou a ser ainda mais essencial. Sair de casa criou enormes sentimentos de insegurança.

À medida que, diariamente, nos iam chegando notícias sobre o número de mortes, novas variantes e efeitos a longo prazo da COVID, fomos forçados a ajustar a nossa vida a um “novo normal” marcado por constantes sentimentso de ansiedade e medo, que só piorou com o recente aumento de casos de Ómicron.

Ainda assim, para um grupo muito específico de pessoas, esse estilo de vida é muito familiar.

Como mãe de um sobrevivente de cancro infantil e estudante de doutoramento na Universidade Curtin, na Austrália, que está a explorar as experiências das famílias com cancro infantil, embarquei numa investigação para tentar entender os efeitos da pandemia em crianças sujeitas a tratamentos oncológicos e nas suas famílias.

Em meados de 2020, entrevistei 34 pais de crianças com cancro, espalhados um pouco por toda a Austrália, sobre as suas experiências durante a pandemia.

A resposta que recebi foi um retumbante: “bem-vinda ao nosso mundo”.

E foi aí que me apercebi que o “estilo de vida pandémico” ao qual todos nos estamos a habituar é, na verdade, muito parecido com o estilo de vida vivenciado por famílias de crianças com cancro.

Os pais envolvidos na minha investigação pintaram um quadro de benefícios e custos devastadores.

Todos os anos, quase mil crianças são diagnosticadas com cancro, só na Austrália – com os avanços no tratamento, as taxas de sobrevivência aumentaram e, neste momento, quase 84% das crianças sobrevivem até 5 anos após o diagnóstico. Mas mesmo esse progresso teve um custo: tratamentos longos, cansativos e complexos que envolvem uma combinação de quimioterapia, cirurgia e radioterapia.

É importante referir que a quimioterapia deixa as crianças profundamente vulneráveis ​​à infeção. Por esse motivo, para as famílias deste estudo, usar máscaras, lavar as mãos, isolar-se e faltar a eventos sociais já era um modo de vida muito antes do início da pandemia.

Apesar de parecer chocante, muitos dos pais entrevistados até ficaram contentes com o aumento do controlo sanitário causado pelo aparecimento da COVID-19.

“Quando a COVID-19 apareceu, as pessoas começaram a ter mais cuidados. Começou a falar-se de distanciamento social, de higienização, de máscaras..”, disse um pai.

Uma frase muito ouvida foi que a “pandemia teve, na verdade, um impacto muito positivo. Com todos estes cuidados, o meu filho não tem ficado tão doente, com gripes, constipações, infeções.. e isso é bom”.

Investigações anteriores descobriram que pais de crianças com cancro muitas vezes lutam para cuidar dos outros filhos, ao mesmo tempo que tentam continuar a trabalhar enquanto têm de acompanhar o seu flho doente – o teletrabalho e a escola online ajudaram a reduzir parte desse fardo.

“Uma das coisas boas é que esta pandemia me permitiu trabalhar remotamente. E isso era impensável há uns tempos atrás. Desta forma, eu consigo trabalhar onde quiser, seja em casa ou no hospital, e continuo a receber um ordenado. Não fui dispensado… acho que a minha situação seria muito diferente há 3 ou 4 anos atrás”, comentou um pai cujo filho foi diagnosticado em finais de 2019.

O cancro infantil é um caminho longo e solitário. As crianças são forçadas a perder uma infância normal, a faltar a festas de aniversário, a faltar à escola, a deixarem de passar tempo com os amigos.

“É uma experiência de isolamento que deixa as crianças doentes a sentirem-se como se fossem estranhas aos outros. Deixam de ter amigos, sentem que perderam tudo. E isso deixa-nos, a nós pais, com um enorme sentimento de culpa e de impotência”.

Nesta investigação, apercebi-me que muitos dos pais comentaram que, com a quarentena obrigatória, os seus filhos deixaram de se sentir “estranhos, porque todos estamos a passar pela mesmo”.

Ainda assim, e apesar de alguns aspetos positivos, as famílias analisadas também contaram histórias de isolamento e de medo devastadoras.

Por causa das restrições que permitiam apenas que um dos pais pudesse acompanhar o seu filho enquanto este estava internado no hospital, vários dos pais que participaram na investigação recordaram o sentimento de solidão que eles próprios sentiram quando foram informados do diagnóstico do seu filho.

“No momento em que soubemos o diagnóstico, eu estava sozinha no gabinete do médico, enquanto o meu marido estava na sala de espera. Eu e o meu filho tivemos de processar todas aquelas devastadoras informações sozinhos, sem o apoio do meu marido”, contou uma das mães.

À medida que o tratamento avançou, as restrições aos visitantes mantiveram as famílias separadas, algumas durante meses.

“Fiquei três meses sem ver o meu marido. Havia dias em que podíamos estar 5 minutos à porta do hospital”, recorda outra mãe.

Uma das mãe descreveu a experiência como “extenuante” devido às restrições, que a impediram completamente de ver os seus amigos e familiares: “foi duro, tanto para mim, como para o meu filho. Não podíamos ver ninguém, não podíamos receber visitas. Durante 1 ano, éramos apenas eu e ele”.

Embora a investigação tenha sido realizada antes da recente onda de casos da Ómicron, acredito que ela pode dar-nos informações valiosas para o futuro.

Apesar das dificuldades da COVID, o vírus permitiu-nos desenvolver novas formas de conexão, nomeadamente online, e uma maior flexibilidade para aqueles que não podem estar pessoalmente. À medida que renegociamos o nosso conceito de “vida normal com a COVID”, acredito que podemos usar essas lições para proteger e apoiar os mais vulneráveis entre nós.

Fonte: The Conversation

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