Foi no passado dia 11 de fevereiro, que o Hospital Pediátrico de Coimbra recebeu o 9.º Seminário de Oncologia Pediátrica, organizado pela Fundação Rui Osório de Castro.
E foi neste dia que, durante quase 30 minutos, Marine Antunes nos brindou com um testemunho carregado de emoção, boa disposição e, acima de tudo, esperança.
“Foi aos 13 anos que conheci a cidade de Coimbra pela primeira vez. Nunca tinha saído da minha aldeia. Eu nasci em França, e vim viver para uma aldeia muito pequenina, chamada Matas. Lembro-me perfeitamente do dia em que espreitei pela janela da ambulância e achei esta cidade tão assustadora. Anos mais tarde, voltei a Coimbra para estudar e fiz as pazes com ela. Acho sempre que devemos voltar aos sítios onde as coisas foram um bocadinho difíceis. Devemos voltar para contarmos outra história”.
“Eu acho que é muito importante vermos histórias positivas, darmos voz a quem tem e a quem teve cancro, para podermos passar uma mensagem”, disse a sobrevivente.
“Não podes escolher aquilo que te acontece, mas podes escolher como reagir”
Hoje com 33 anos, Marine foi diagnosticada com um linfoma não-Hodgkin quando tinha apenas 13 anos de idade.
“Quando eu fui diagnosticada com linfoma, deixei a minha aldeia, o meu pai, as minhas irmãs, o meu cão e o meu periquito, e vim para Coimbra com dois ingredientes essenciais: a minha mãe e uma ferramenta sobre a qual muito tenho falado e partilhado – o humor”.
“O humor é muito mal visto em Portugal, as pessoas têm medo do humor, quase como se fosse uma ferramenta que incomoda, uma ferramenta que não é valorizada como devia, porque as pessoas acham que brincar com as coisas difíceis é ser leviano, e aquilo que eu defendo é que nós não estamos a ser levianos com estes assuntos, estamos apenas a trazer leveza à nossa vida, à vida que merecemos ter, independentemente do diagnóstico. O humor é uma ferramenta que se partilha, que se ensina em casa. É uma ferramenta extraordinária porque traz consigo a magia da relativização. Quando nós conseguimos rir de uma coisa que nos acontece, automaticamente estamos a relativizar um bocadinho aquela dificuldade”.
Marine recorda que o humor sempre esteve presente na sua família, principalmente nos momentos mais difíceis. Um desses exemplos foi no dia em que o seu pai ficou desempregado.
“O desemprego é algo sempre muito difícil nas famílias. Eu venho de uma família humilde: o meu pai é pedreiro e a minha mãe empregada de balcão, e naturalmente que a notícia do desemprego foi difícil. Estávamos à mesa, e a minha mãe decide diz ‘Filhas, temos uma coisa para vos dizer: o papá está desempregado’. Nós ficámos a olhar umas para as outras, preocupadas, até que a minha mãe, ao se aperceber da nossa reação, olhou para nós e disse: ‘Eu não estou a perceber porque é que vocês estão com estas caras tão tensas…vocês não andam sempre a dizer que querem ser magras? Então, estamos a fazer-vos um favor – acabou-se a carne’”.
“Nós rimo-nos e eu achei aquilo genial. A minha mãe tinha acabado de transformar aquela má notícia numa coisa mais leve. E tinha acabado de me ensinar a premissa da minha vida, que é ‘tu não podes escolher aquilo que te acontece, mas podes escolher como reagir àquilo que te acontece’”.
“O humor é um grande ato de amor”
Um ano depois deste episódio, Marine recebeu o seu diagnóstico – “a minha mãe foi absolutamente maravilhosa neste processo – ela fez-me rir, manteve-me calma, mas era super assertiva”.
Foi essa assertividade, conta, que lhe permitiu ter uma noção diferente da sua doença.
“A noção de que ‘isto vai ser uma experiência que um dia vais contar’ foi fundamental para eu decidir de que forma me iria comportar neste processo. E há um episódio que eu adoro – eu já estava no hospital e queria que a minha cama estivesse decorada, porque a minha colega de quarto tinha na cama fotografias e coisas assim muito giras. E eu disse à minha mãe, que é uma mulher bastante prática, que também queria a minha cama decorada – e ela disse-me logo ‘Oh filha, não. Tu estás aqui só de passagem’. E eu pensei ‘Que génia. Ela não quer ter trabalho e então diz-me que eu estou só aqui de passagem’. Mas na verdade, é que esta frase, este ensinamento, foi muito importante. Eu nunca decorei quarto nenhum, porque estava ali só de passagem”.
Para Marine, um dos momentos mais marcantes aconteceu no dia em que ela apanhou a sua mãe a “ler” um livro ao contrário.
“Eu estava no quarto e a minha mãe estava comigo. Eu estava bem-disposta, sem febre e estava a custar-me que a minha mãe estivesse ali horas infinitas por minha causa. E então disse-lhe para ela ir dar uma volta. E ela, muito tranquila, disse-me que não estava ali por causa de mim – ‘Estou aqui só para acabar de ler um livro’, disse-me […] O livro era meu, e quando eu olho melhor, vi que a minha mãe tinha o livro ao contrário. E aquele momento fez-me perceber que aquela mulher, a minha mãe, nunca iria a lado nenhum sem mim. Deu-me uma vontade tão grande de rir, mas não a quis denunciar. E esta forma de estar, esta leveza, foi um grande ato de amor. O humor é um grande ato de amor!”
O enfermeiro Umberto e a importância da autoestima
Marine não esquece todos aqueles que a ajudaram neste processo, nem mesmo o seu enfermeiro, o enfermeiro Umberto.
“O enfermeiro Umberto era maravilhoso, empático, simpático e muito giro. E isto é algo que eu peço a todos os enfermeiros e enfermeiras: sejam giros! Uma pessoa já está doente e está…, mas pronto, o meu enfermeiro todos os dias, usava o humor – e atenção, o humor não é a piadola, é a energia – para me cumprimentar. Era um “bom dia, como é que está a flor?” ou “bom dia, como está a princesa deste hospital?” – e é uma pena, porque eu nunca lhe respondi. Só com guinchos, porque eu estava platonicamente apaixonada por aquele homem”.
Um dado curioso, segundo Marine, é que “sempre que era o enfermeiro Umberto a administrar-me a quimioterapia, eu nunca vomitava. Primeiro, porque pensava que era a coisa menos sexy que uma mulher podia fazer, e depois porque a questão da simpatia, da empatia e do carinho fazia toda a diferença e ajudava-me a estar tranquila. Nós estamos ali, nervosos, se entra alguém com uma cara fechada, que nos grita ‘Tens de ter calma’ é pior. É impossível. E então quando as pessoas conseguem contrariar isso e darem a sua melhor versão, e se por cima disso ainda nos conseguem fazer rir, é absolutamente extraordinário.”
Estas experiências mostraram que o “humor era também uma questão de autoestima” e ensinaram Marine que “se eu conseguisse rir de mim mesma, se eu conseguisse brincar comigo e relativizar o meu caos, a minha vida seria mais fácil”.
A miúda do “cancaro” com orelhas de Dumbo
Com o avançar dos tratamentos, o cabelo de Marine começou a cair.
“Cair-me o cabelo não foi o mais dramático, mas não foi fácil”.
Nessa altura, a família tomou a “péssima decisão de ir cortar o cabelo ao cabeleireiro da minha aldeia. Eu não sei se há aqui pessoas que são de uma aldeia, mas se houver, vocês sabem que o cabeleireiro é o sítio de maior calhandrice da aldeia. A fofoca vive dentro de um cabeleireiro. […] Quando eu entrei no cabeleireiro, ouvi o seguinte relato de uma senhora: ‘Ai, aquela é a miúda do cancaro’ – sim, porque na minha aldeia diz-se cancaro”.
“De repente, quando já tinha a cabeça rapada, ganho coragem e olho, finalmente, para o espelho. Foi um momento difícil, porque foi a primeira vez que eu me vi e senti efetivamente doente. Mas ganhei coragem, olhei em frente, olho para mim pela primeira vez, e apercebo-me de uma coisa chocante – ‘Caraças, eu tenho uma orelha maior que a outra’. Eu nunca tinha reparado porque toda a vida tive cabelo. E ali, entro num pequeno delírio, fiz a minha pequena cena. A minha mãe a dizer para eu ter calma e eu a dizer ‘Oh mamã, mas eu pareço o Dumbo’. Fiz um miniescândalo”.
“Eu esqueci-me completamente que estava careca, só conseguia reparar naquela orelha deformada. E hoje, claramente, percebo que na altura eu estava a escolher a minha tragédia – a minha tragédia era a orelha e não o cancro. Na altura não me apercebi disso, mas esta coisa da normalidade, da ‘doença não me define’ vem precisamente daí, do início, da ajuda dos meus pais em normalizarem esta situação”.
Boinas, primeiros amores e a força para continuar
“Eu não fui à escola durante um ano. Mas quando estava bem, sem febre, tinha autorização para ir a casa e os meus deixavam-me ir 5 minutos à escola, só para ter alguma normalidade. Ia com a minha boina [oferecida pela irmã mais velha]. As pessoas olhavam, mas eu sentia que estavam a comentar a minha boina estilosa e não o facto de eu ter cancro”.
“Eu precisava muito de estar com os meus amigos. Num desses dias […] a minha mãe levou-me à rodoviária para eu os ver”.
Foi na rodoviária que Marine reencontrou o seu primeiro grande amor: o Mikael com K.
“Eu amava profundamente aquele rapaz, que se chamava Mikael com K. O Mikael com K nem sabia que eu existia, mas ele era um bad boy, com cabelo comprido, usava franja. O Mikael não andava, ele desfilava, na pausa. Não sorria, estava sempre sério. E usava sempre um casaco de cabedal preto. Não tinha moto, mas tinha o casaco. Ele era repetente, e só tinha um caderno, preto, que usava dobrado debaixo do braço e que dava para todas as disciplinas. O Mikael era muito giro. Eu amava-o. E então, quando o vi no grupo, ajeitei a boina e decidi que era naquele dia que me ia declarar. Não tinha nada a perder.”
E assim foi. Decidida, Marine dirigiu-se até à sua grande paixão “com os meus 20 quilos a mais, sem sobrancelhas, sem pestanas, sem cabelo, mas cheia de confiança. Ele vira-se para mim e diz-me ‘Olá Marine, estás boa?’ e o que é que eu respondi? Ri-me. Fiz uma pinguinha de xixi e pensei ‘Ai meu Deus, o Mikael com K sabe o meu nome. Este é o dia mais feliz da minha vida. Isto agora depois do cancro é sempre a subir’”.
No final, “o Mikael pergunta se me podia dar um abraço. Quando eu vou para o abraçar, o desgraçado do Mikael com K tira-me a boina. Eu fico careca perante centenas de putos, e ele fica a apontar para mim a rir-se – ‘estás careca e feia’”.
“Morri ali. Peguei na boina, desatei a correr e a ligar aos meus pais. Fui para casa e estive uma semana fechada, a chorar. Mas 7 dias depois, levantei-me, olhei para o espelho, e prometi duas coisas: nunca mais me ia apaixonar por idiotas (não cumpri) e nunca mais seria a ultima pessoa a rir-me de mim mesma. E este juramento eu cumpri, porque em 2013 criei o projeto “Cancro com Humor”.
“Depois desses 7 dias, voltei à escola, tirei a boina voluntariamente à frente dos meus amigos e assumi a minha careca de forma natural.”
“E é extraordinário olhar para trás e pensar que aquele evento, que na altura foi altamente traumatizante, hoje é uma história engraçada que faz refletir. Se eu não tivesse aquele humor, aquela autoestima, se calhar não teria chegado a esta conclusão”.
Ver o outro para além do diagnóstico
“Neste processo, percebi várias coisas. Percebi que é difícil ter cancro, mas é mais difícil ser infeliz; percebi que todas as pessoas nos podem ensinar alguma coisa; percebi que é muito difícil lidar com outros; percebi que é muito mais difícil lidar com os comentários e com os olhares do que com a doença; percebi que o humor me ajudou com a minha autoestima, na relativização do meu caos, me ajudou a aceitar-me e a gostar de mim”.
Outro dos pilares de Marine durante o seu tratamento, foi a Dr.ª Marilene.
“A Dr.ª Marilene tinha uma caraterística extraordinária que nem todos os médicos têm: ela era brasileira. E os brasileiros têm uma enorme alegria de viver, e então ela tinha uma alegria natural quando comunicava, o que era incrível. Ela falava comigo, ela explicava-me tudo e ela ouvia-me”
“Ver o outro para além do diagnóstico é fundamental, porque nós vemos muitos dados e não temos como não nos arrepiar, e acho que aqui falo por todos os doentes oncológicos – não há nada pior que nós sentirmos que somos apenas um número. Nós temos um nome, temos uma cara, temos uma família. E é absolutamente extraordinário quando entramos num consultório e o médico sabe o nosso nome, e fala connosco e sabe um bocadinho da nossa história”.
“A verdade é que todas estas relações que eu fui construindo ao longo da vida fizeram com que eu estivesse aqui hoje. E desde o início que me sinto uma privilegiada, que me sinto abençoada. A minha família e todos aqueles que me rodearam foram fundamentais para que eu nunca entrasse no caminho da vitimização. Isso é muito fácil acontecer. Eu sempre me senti uma sortuda, porque tinha mãe, tinha pai, estava a ser acompanhada…”
“Não termos medo das palavras”
Um dia, enquanto recebia um dos seus tratamentos, a mãe de Marine perguntou-lhe se ele estava triste.
“E eu disse que não – ‘estou a fazer o tratamento, estou a tratar-me’, respondi. E pode não parecer muito, mas eu não sentia que entrava no hospital para tratar do cancro, eu entrava no hospital para tratar da minha saúde. E esta troca de palavras faz a diferença toda. E só depende de nós. E é por isso que é tão importante chamarmos as coisas pelos nomes, chamarmos as doenças pelos nomes, não termos medo das palavras”.
Cerca de 19 anos depois, Marine é uma mulher realizada e cheia de projetos, incluindo o mais recente – “À procura do True Power” [https://www.youtube.com/@humorrelevanteassociacao7588]
“Já se passaram 19 anos. Faço anos para a semana e choro sempre muito no meu aniversário. O aniversário é uma celebração da vida, mesmo que todos os dias o possam ser. Mas a verdade é que passaram 19 anos, criei o projeto ‘Cancro com Humor’ por esta necessidade de partilhar esta história de forma mais positiva e mais alegre. Depois vieram os livros e as palestras, e mais recentemente lancei o “À procura do True Power”, uma série onde converso com pessoas diagnosticadas com cancro, de uma forma leve e descontraída […] Ali falamos de tudo – falamos de cancro, mas falamos acima de tudo de vida”.
No final, houve ainda tempo para um último e precioso conselho.
“Ninguém queria passar por isto, obviamente. Mas já que passamos, já que esta história acontece a muitos de nós, então que o façamos a sorrir. Este é o apelo que eu deixo. O humor é o maior ato de amor. Nunca tenham medo da leveza, da descontração, ou de contar uma história a sorrir, porque garanto-vos que é muito mais fácil passar por isto se tivermos à nossa volta pessoas com um sorriso nos lábios.”
O 9.º Seminário de Oncologia Pediátrica decorreu no dia 11 de fevereiro, no Hospital Pediátrico de Coimbra. Ao longo das próximas semanas, iremos divulgar vários artigos, feitos com base nas conversas tidas durante este dia.
Fonte: Fundação Rui Osório de Castro